Almirante Saldanha: A Jornada de um Ícone da Marinha Brasileira
- Fernando Lino Junior
- 23 de abr.
- 6 min de leitura

Durante mais de meio século, o Navio Escola Almirante Saldanha foi um verdadeiro pilar da Marinha do Brasil, simbolizando não apenas o vigor da formação naval brasileira, mas também a entrada definitiva do país no campo da pesquisa oceanográfica moderna. Da sua construção na Inglaterra à sua conversão em laboratório flutuante, o navio marcou época pela versatilidade, longevidade e impacto.
A Gênese de um Símbolo
O projeto do Almirante Saldanha começou em um momento de reformulação das estruturas navais do Brasil. Com o objetivo de modernizar a formação dos oficiais da Armada, o governo brasileiro, sob a liderança de Getúlio Vargas, encomendou em 1933 a construção de um novo navio-escola ao estaleiro Vickers-Armstrong, na Inglaterra. Lançado ao mar em dezembro do mesmo ano, ele foi batizado em homenagem ao Almirante Luiz Filipe Saldanha da Gama, figura histórica da Revolta da Armada.
O navio chegou ao Brasil em 1934 e imediatamente assumiu funções educativas. Suas primeiras viagens foram voltadas para o treinamento de guardas-marinha da Escola Naval, navegando por diversas regiões do Atlântico Sul e Caribe, promovendo também a diplomacia naval brasileira.
Um Clássico da Arquitetura Naval
Com linhas elegantes e estrutura robusta, o Almirante Saldanha foi projetado como uma corveta de instrução — embarcação especialmente concebida para o treinamento de guardas-marinha. Construído no estaleiro Vickers-Armstrong, na Inglaterra, seu desenho harmonizava a tradição naval europeia com as necessidades modernas da Marinha brasileira. Possuía três mastros, característica típica dos veleiros de instrução, embora também contasse com propulsão mecânica, o que o tornava um navio híbrido e altamente funcional. Com 81 metros de comprimento e 12 metros de boca, deslocava aproximadamente 2.200 toneladas, conferindo-lhe estabilidade e presença imponentes em alto-mar.
Sua tripulação era numerosa e diversificada: cerca de 460 pessoas embarcavam a cada missão, incluindo oficiais da ativa, guardas-marinha em formação e civis técnicos ligados às atividades educacionais e científicas. A bordo, os jovens cadetes recebiam treinamento prático em navegação, manobra, comunicações e rotinas de bordo, em um ambiente que simulava, com fidelidade, as condições reais de uma embarcação de guerra. Esse aprendizado em mar aberto era essencial para formar profissionais capacitados, integrando teoria e prática com o rigor disciplinar e operacional da Marinha.

Apesar de contar com propulsão a motor — o que era fundamental para missões de longa distância e maior controle —, o Almirante Saldanha preservava seu conjunto completo de velas, que continuava sendo utilizado durante os exercícios. Essa característica não era apenas simbólica: permitia o ensino da navegação à vela, uma tradição que remontava à era da Marinha Imperial e que era valorizada por formar marinheiros mais completos e versáteis. Com isso, o navio representava uma ponte entre o passado e o futuro da navegação militar brasileira.
Participações Históricas
Em sua extensa carreira, o Almirante Saldanha esteve presente em momentos significativos tanto para o Brasil quanto para a comunidade internacional. Durante a Segunda Guerra Mundial, na década de 1940, embora o navio não tenha participado diretamente de combates, sua função como corveta de instrução foi mantida com responsabilidade e cautela. Operando em áreas marítimas consideradas seguras, o navio seguiu formando oficiais, garantindo que a Marinha brasileira continuasse preparada, mesmo diante das incertezas do cenário global. O treinamento a bordo, realizado sob rígidos protocolos de segurança, assegurava a continuidade da formação naval sem comprometer a integridade da tripulação.
Entre as missões mais marcantes de sua trajetória está a participação no Ano Geofísico Internacional (1957–1958), um projeto de cooperação científica global que envolveu mais de 60 países. Durante essa operação, o Almirante Saldanha realizou 162 estações oceanográficas em alto-mar, coletando dados valiosos sobre temperatura, salinidade, profundidade e correntes oceânicas. Os estudos realizados a bordo foram fundamentais para o avanço da oceanografia brasileira e contribuíram para o mapeamento de fenômenos climáticos e geofísicos de grande importância, como o comportamento das correntes marítimas e a dinâmica das massas de água do Atlântico Sul.
Outro ponto alto da missão foi a reafirmação da soberania brasileira sobre a Ilha da Trindade, situada no Oceano Atlântico, a mais de 1.100 km da costa do Espírito Santo. A presença do navio na região não apenas garantiu suporte logístico para as pesquisas científicas, como também consolidou o domínio do Brasil sobre o arquipélago, de relevância estratégica e geopolítica. O Almirante Saldanha, assim, firmou-se não apenas como plataforma de ensino, mas como um agente ativo da diplomacia científica e da projeção do poder marítimo nacional.
À Deriva no Mar do Norte: Uma Tempestade que Testou a Resistência
Durante a viagem de instrução de 1950, o Navio-Escola Almirante Saldanha enfrentou uma das situações mais dramáticas de sua história. Navegando entre a Suécia e a Noruega, a embarcação foi surpreendida por uma tempestade violenta que a deixou à deriva no Mar do Norte. O mar enfurecido causou danos significativos ao navio, incluindo a quebra dos mastros, comprometendo sua capacidade de navegação e comunicação. A tripulação, composta por guardas-marinha em treinamento e oficiais experientes, enfrentou momentos de tensão e incerteza, sem contato com o mundo exterior por um ou dois dias.
O radiotelegrafista a bordo, que desempenhava um papel crucial nas comunicações, recorda com emoção os momentos de desespero e a luta pela sobrevivência. "Perdemos contato, ficamos à deriva, o mar enfureceu. Começaram a quebrar os mastros. Ficamos perdidos um dia ou dois. Tivemos sorte, porque podia ter afundado", relatou o veterano em entrevista à Agência Marinha.

Apesar das adversidades, a tripulação demonstrou coragem e profissionalismo, conseguindo estabilizar a situação e retomar o controle da embarcação. Esse episódio não apenas testou a resistência física e psicológica dos envolvidos, mas também reforçou os valores de disciplina, união e resiliência que caracterizam a formação naval brasileira. A memória desse evento permanece viva entre os ex-tripulantes, sendo lembrada como um marco de superação e aprendizado durante a formação dos oficiais da Marinha.
Transformação em Navio Oceanográfico
A década de 1960 trouxe uma nova missão ao navio. Em 1966, com apoio da UNESCO, ele foi adaptado e modernizado, tornando-se o primeiro grande navio oceanográfico do Brasil. Foram instalados laboratórios de química, física, biologia e meteorologia, além de equipamentos para sondagens e coleta de amostras em profundidades de até 6.000 metros.
Sob a nova designação de Navio Oceanográfico Almirante Saldanha (NOc Almirante Saldanha), ele foi utilizado tanto pela Marinha quanto por universidades brasileiras, como a USP, a UFRJ e a UERJ, que realizaram diversas expedições científicas ao longo das décadas de 1970 e 1980.
Um Fim Modesto para uma Carreira Grandiosa
A última missão científica do Almirante Saldanha ocorreu em 1984, marcando o encerramento de uma trajetória de quase meio século de serviços prestados à Marinha e à ciência brasileira. Após essa missão, o navio foi gradualmente retirado de operação, refletindo o avanço tecnológico e a mudança nos padrões de treinamento naval. Em 1990, foi oficialmente desincorporado do serviço ativo, encerrando formalmente sua carreira. Contudo, seu afastamento das atividades não foi acompanhado de uma cerimônia à altura de sua importância histórica — o navio simplesmente deixou de navegar, sem o devido reconhecimento público.
Nos anos seguintes, o Almirante Saldanha permaneceu atracado na Baía de Guanabara, em estado de abandono, cenário que provocou tristeza e revolta entre ex-tripulantes, pesquisadores e admiradores da história naval brasileira. A imagem do imponente navio, agora corroído pela ferrugem e pelo tempo, contrastava fortemente com sua antiga glória nos mares do Atlântico. Durante esse período, diversas propostas foram apresentadas com o objetivo de preservar a embarcação, incluindo projetos para transformá-lo em um museu marítimo ou centro cultural flutuante. No entanto, esses planos não prosperaram, seja por falta de recursos, de apoio institucional ou de vontade política.

Seu desmantelamento acabou ocorrendo de forma silenciosa, longe dos holofotes e sem homenagens oficiais. Apesar disso, o Almirante Saldanha permanece vivo na memória daqueles que por ele passaram — oficiais, cadetes e cientistas que encontraram em suas cabines e convés um verdadeiro laboratório de aprendizado e descoberta. Seu legado resiste como símbolo de uma era em que a formação naval brasileira caminhava lado a lado com a pesquisa científica, unindo tradição, tecnologia e soberania nacional em uma mesma embarcação.
Legado
O Almirante Saldanha representou uma era de transição na Marinha do Brasil: da navegação a vela à era científica. Formou dezenas de turmas de oficiais e contribuiu para o início da oceanografia moderna no país, sendo um dos primeiros instrumentos de estudo de nosso litoral e plataforma continental.
Sua história é lembrada como um exemplo de longevidade, polivalência e contribuição civil-militar. Um verdadeiro monumento flutuante da história brasileira.
Fontes: Marinha do Brasil Arquivo da Marinha Poder Naval - Familia do veterano da Marinha, Sr. José Osório
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